segunda-feira, 1 de agosto de 2011

O suspiro de um beijo bom.

A precipitação caía na noite e tocava-me na parte superior da face, próximo ao cabelo, e escorria fazendo todas as curvas do rosto até ficar pendurada no maxilar e em seguida desprender-se por sua densidade ser maior do que consegue suportar. A gota fria pendia incessante e pertinente. A temperatura era o que diferenciava a chuva das lágrimas, que eram produzidas sem motivo, afinal. Uma vez que o passado já não era algo, menos ainda algo pelo qual chorar. Saudade sempre tão esquecida e aparecia como um bruxo de J. K. Rowling aparatando sem nenhum aviso prévio e manifestando-se instantaneamente, naquela fria e molhada escuridão que se tornara aquela rua em que os postes de iluminação falhavam dois para um que funcionava.

Com os últimos cinco meses de felicidade, foco, determinação e sonhos jogados fora por alguém a quem tinha confiado mais do que já confiara em alguém, exatamente por ter começado absurdamente diferente do que todas as outras vezes. Sentia falta do começo. Sentia falta de dois anos e sete meses atrás. Sentia falta um ano e onze meses atrás. Sentia falta da melhor amiga perto. Sentia tanta falta de tanta coisa que, nesse tempo cega, pareceu-me não ter mais tanta importância assim. Entretanto era tão óbvio - que era quase palpável - que eu nunca deveria tê-los deixado.

As roupas já estavam absolutamente encharcadas. E, apesar de tudo, caminhar parecia algo perfeito a se fazer no momento, uma vez que a única vontade era sair de perto de tudo que vivenciara nos últimos meses, conhecer algo novo, voltar pro antigo, entretanto, esse meio-tempo de cinco meses, queria fingir que nunca existiu. Apagar da memória e de tudo que pudesse trazer a ínfima lembrança de volta. No entanto, se a escolha a se fazer fosse voltar para o que já era de minha posse anteriormente, teria que lidar com todas as indagações e arguições, com a cólera dos abandonados, com o equívoco, com o que tinha sido passado pra trás quando escolhi mudar. Enfrentar e aceitar alguns erros há muito tempo esquecidos e a idéia de ter que enfrentar algo agora que estava tão desprovida de força assustava mais do que o normal. Ademais, começar uma vida nova parecia o mais certo.

O cartão de crédito ainda era pago pelo pai. Não tinha preocupação financeira e, nem que tivesse, era hora de tomar decisões. Começava a desacreditar que ainda chovia tanto quanto chorava. Será que quando parasse de chover, pararia de chorar? Ou será que pararia de chorar quando parasse de chover? Afinal a chuva era algo tão triste, era um ciclo vicioso climático irritante. Evapora-precipita-evapora-precipita, nunca evaporando de um lugar e caindo em si mesmo, sempre de um lugar pra outro, miscigenando as águas de diversos lugares. Seria tão mais fácil se a chuva pudesse me levar para outro lugar e me fazer encaixar assim como ela faz com que a água contida nela siga em rumo do seu local ideal. As correntes de ar já não pareciam tão frias, tinha acostumado com a sensação térmica e agora faltava acostumar com a nova situação de vida.

Não conseguia acreditar que depois de todas as mudanças com um só objetivo, de nada tinha adiantado. Tudo destruiu-se, voltou ao nada, de onde nunca deveria ter saído, ou foi pra algum lugar pior, visto que agora teria que recomeçar uma vida por não ter coragem e nem forças pra retornar a que tinha. Depois de tantas turbulências, tantas dificuldades, onde foi parar todo aquele empenho? Toda aquela vontade de ficar junto? Toda a espera de que ele tanto se gabava foi desperdiçada repentinamente. Talvez seja melhor assim. Nenhum esforço sem vontade, nenhuma mentira, sem mais fingir que está tudo bem quando está um caos. Máscaras ao chão, finalmente.

Já caminhava a quase uma hora e cruzei com as primeiras pessoas, um casal que tentava inutilmente fugir da chuva. O rapaz meio abraçava a garota enquanto segurava a blusa dele para protegê-la da chuva, os dois estavam com os corpos projetados pra frente, um pouco corcundas, parei no meio da rua e observei-os enquanto corriam. Lembrei de quando Louis faria tudo por mim. Chegava a ser sufocante o modo como ele me mantia sempre num pedestal, sempre me fazendo rir, me protegendo, me mantendo intacta, tanto fisica quanto mentalmente. Como esse casal. "Moça!", eu disse, ela parou e tirou a cabeça da proteção da blusa, permitindo-se a olhar pra mim. "Tome cuidado, pode não ser sempre assim.", ela ergueu apenas uma das sobrancelhas, pelo que eu pude ver e eles voltaram a correr. Tudo bem se ela não desse atenção para o que eu disse, eu só achei que deveria avisá-la, eu poderia descrever exatamente o que ela sentiria se a proteção e afeto, do rapaz que a protegia naquele momento, não funcionassem depois de um certo tempo.

Uau. Surpreendendo a mim mesma: preocupação por alguma pessoa além de mim, sem nem conhecê-las. Realmente havia mudado. O que não importava mais, porque não existia mais nada que mantivesse o interior afável ou sóbria. Parecia uma ótima maneira de recomeçar, retrocendendo a personalidade ao que era há cinco meses atrás, ao que era antes de Louis.

Não merecia passar por isso, não depois de todo o esforço empregado pra dar certo. Nenhuma pessoa mereceria. Uma praça. Nunca tinha estado ali antes, mas era como se já tivesse meu banco favorito, quem sabe meu subconsciente agindo através do cansaço que eu não percebia por não conseguir sentir mais nenhum membro do meu corpo. Eu só sabia que ainda tinha pernas por estar me locomovendo. Percebi um daqueles relógios que também mostram a temperatura, era 1h20, já tão tarde. Caminhei por quase três horas. Sentei-me então no banco escolhido, apoiei os cotovelos nos joelhos e o rosto nas palmas da mão.

Vi passar diante de meus olhos a cena que me levara a esse estado lastimável, quis abrir os olhos, mas meu masoquismo forçou-me a repetir e repetir a cena, até aceitar que ela realmente acontecera. Queria voltar no tempo e separá-los daquele beijo tão invejavel e errado, tão traiçoeiro, com um desejo recíproco tão evidente. Com um desejo que nunca tinha visto por mim, antes. Como Louis teria sido capaz, eu nunca descobriria, porque eu nunca tive coragem de perguntar. Entretanto ele não fazia a mínima ideia de que eu descobriria, era para eu estar longe da cidade e eu tinha desistido de viajar. Uma ironia já que eu teria que sair dali assim que colocasse a cabeça no lugar. Eu queria tê-los matado logo ali, mas não fiz. Prefiri ter certeza do que eu queria e eu tinha agora.

Tirei minha blusa, porque ela só estava me deixando mais pesada e eu estava dispensando atrasos, livrando-me deles. Postei-me em pé. Voltei pro local onde foi minha casa nos últimos tempos. Bons tempos. Lá estavam eles, deitados em minha cama. Minha ex-cama. Meu atual ex-namorado. Fechei a porta com uma força maior do que a necessária para o ato, no entanto a força exata para que ela fizesse um barulho mais alto do que o comum. Tudo era intencional.

Ele acordou assustado porém não tão assustado ao me ver parada ali e olhando para ele. Os olhos azuis me fitando com um desejo de estar imaginando maior do que eu achei que veria. Dizer que ele estaria decepcionado consigo mesmo, seria mentira; Contudo, ele começou uma tentativa inútil de explicar-me o que eu estava vendo, mesmo sabendo que não conseguiria. E apesar de tudo, ele era esperto, cessou os resmungos antes que eu pudesse pedir que ele parasse.

Ele me pedia desculpas, dizia o quanto tinha errado, o quanto me amava, o quanto me queria. Eu sorria, tentava manter minhas glândulas lacrimais inativas mesmo sendo uma tarefa árdua, não pronunciava uma palavra sequer, porque sabia que isso tiraria minha concentração do que mantia-me sorrindo e sem lágrimas. Ela dormia feito um anjo, tão satisfeita e tão calma que dentro de seus sonhos não imaginava a briga que estava acontecendo. Todavia, ela não tinha culpa de nada, eu não a namorava e nem queria.

Olhei pro chão, pra ele e sua tentativa de me manter ali. Caminhei ate o quarto e comecei a me despir, ele me seguia e se explicava, ele me conhecia, ele sabia que meu silêncio significava que eu não levaria algo do que ele dissesse em consideração. Troquei minha roupa por uma limpa e seca, coloquei a molhada numa sacola e larguei de qualquer jeito dentro da minha mala, assim como fiz com todas as minhas coisas.

Louis não desistia. Eu respeitava seu empenho, eu abster-me-ia nos primeiros dez minutos. Entretanto, esse era Louis, foi essa persistência que tinha me conquistado e me tirado de perto de tudo que era certo na minha vida para o duvidoso, agora totalmente incorreto. Pelo menos, eu tinha tentado.

Mexi com a menina na cama, ela acordou tão assustada quanto o loiro com quem dormira. Pedi que não se assustasse, só saísse de minha casa. Ela não hesitou, nem protestou, levou menos tempo pra sair do que eu imaginei que levaria. Louis ainda não acreditava que eu estava o deixando, como se houvesse alguma outra alternativa plausível. Mandei-o tomar um banho, para podermos conversar sem que eu sentisse nojo.

Terminei de arrumar tudo e chamei um táxi, deixando-o ciente de que eu poderia demorar um pouco para descer e pedindo que esperasse mesmo assim, poderia deixar o taxímetro ligado, se preciso fosse.

O loiro saiu do banheiro mais bonito do que nunca, era bom que estivesse tão bonito. A toalha enrolada na cintura. Todas as suas linhas e formas tão definidas. Os seus olhos azuis tão infinitamente penetrantes e límpidos. O seu cabelo loiro caindo-lhe parte em frente aos olhos, depois de fazer uma onda a partir da raíz e parte arrepiada e bagunçada no resto da cabeça. E foi exatamente nessa hora que eu entendi o que eu amava, só aquela imagem alemã que eu tanto cobicei. Nada mais. Nada mais a perder além de uma imagem.

Ele dirigiu-se para o quarto, vestir-se-ia. Começou pela camiseta branca e nunca terminou. A faca de cozinha sempre tão bem afiada, culpa da minha preguiça de cortar carne com faca ruim, culpa da disposição dele de sempre deixá-la afiada o bastante para que eu não fadigasse. A camiseta branca agora enxarcada de sangue, só não estava mais enxarcada do que a roupa que eu cheguei da rua.

Repeti o movimento, ainda segurando firme no cabo branco, do qual o branco eu já não podia mais ver. Repeti o movimento enquanto ele despencava em sua lamentação. Repeti o movimento enquanto seus joelhos cediam à dor. Repeti o movimento, enquanto a fraqueza tomava conta dele. Repeti o movimento até que ele não suspirasse mais. Repeti o movimento até que tive a certeza de que ele não faria com mais ninguém o que fez comigo. Repeti o movimento até que eu não pudesse mais ver vida naqueles orbes azuis. Repeti o movimento até ver seu cabelo loiro tornar-se ruivo.

Virei seu corpo, fazendo-o olhar para mim. Apoiei-me em seus ombros colados ao chão. Olhei dentro de seus olhos inertes e só então comecei a falar.

"Oh, Louis! Por que tivera que me levar a fazer isso contigo? Que motivo tinhas para alimentar tamanho ódio por ti, dentro de mim? Eu quem sempre errava num relacionamento e dessa vez, e somente dessa, eu decidi que acertaria em tudo. Continuei acertando. Acertei agora. Agora estamos quites. Eu perdi parte da minha vida por sua culpa. E agora você perdeu parte da sua por minha. Você destruiu a melhor parte da minha. Eu acabei com a sua. Espero te encontrar de novo."

Quis beijá-lo uma última vez, não o fiz. E quiçá tenha sido meu único arrependimento nesse dia.

Um comentário:

natan disse...

conto muito bom! realmente gostei! (: