segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Can't Hold Us

Meu pai não via nada de bom no meu namoro, dezessete anos, meu primeiro namorado, eu já tinha previsto essa reação. Raul deixava a barba por fazer, não gostava de seu rosto angelical que lhe dava a aparência de ser mais novo do que realmente era. Eu gostava. Entretanto gostava da barba também. Eu gostava de bastante coisas nele, na verdade. O efeito de sua voz sobre mim era surpreendente, me enchia de euforia e calma simultaneamente. Seus olhos sempre tão sinceros e tão brilhosos, pareciam que eram lustrados com a paciência de uma bibliotecária. Sua boca nem carnuda e nem fina, combinava exatamente com a pinta do lado direito acima do lábio superior. E o rosto jovial que dava a forma perfeita para o conjunto formador da face. Tudo nele me agradava. Inclusive o cheiro dele, não o perfume que ele usava, mas o cheiro dele mesmo. Dizem que na curva formada pela clavícula, também chamada popularmente de saboneteira, pode-se sentir o verdadeiro cheiro da pessoa. E que você só se apaixonará verdadeiramente se você gostar do que sentir. Talvez sejam só boatos, mas funcionou comigo. Eu nunca tinha me deixado levar pela ‘baboseira do amor’, sempre achei engraçado e azucrinei aqueles que se apaixonavam no meu círculo social e agora, pela primeira vez, eu era quem merecia aquelas piadas que fiz, porque eu estava irreconhecível. Boatos que isso acontece com todo mundo. Mas eu não queria ser todo mundo, sempre achei qualificações e características que separavam a mim e Raul do resto dos apaixonados. Para começo de conversa, nós sabíamos a hora de estar com nossos amigos e a hora de estarmos sozinhos, sabíamos distinguir coisas a fazer com eles das coisas que deveríamos fazer quando estávamos apenas nós dois. E isso não significa que tenhamos ido além de onde se deveria ir quando estamos namorando há apenas sete meses. Sete meses e meu pai ainda não tinha aceitado. Minha mãe acreditava que éramos o casal mais lindo do mundo. Meu pai achava que ele não era bom o suficiente: “Aquela barba… Ele não se importa nem com a aparência, vai se importar com você? Cheio de tatuagens, parece um delinquente.”, acabava sempre aí nossas discussões sobre o quanto meu namorado poderia ser bom pra mim. E claro que por minha pseudodesobediência, eu já não tinha mais tanta liberdade pra sair. “Foco nos seus estudos!”, “Você tem que entrar pra faculdade esse ano.”, “Você tem saído demais.”, sempre as mesmas desculpas. Sem contar que Raul não era da nossa Igreja e isso era realmente importante para o meu pai. Mas eu sabia que poderia levar Raul para lá no fim das contas, porque apesar de parecer desleixado, ele era muito vaidoso e era um bom rapaz. Boliche, cinema, jantares e praia eram nossos programas com os amigos. Quando queríamos nosso espaço, ele me levava em sua camionete Ford F1000 velha, bem velha na verdade, mas bem cuidada, para os campos que tinham perto da cidade, tinham várias chácaras ao redor da cidade, e no caminho para elas tinha um antigo mirante, antigo pela idade e pela falta de uso, mas com uma vista maravilhosa, sempre discutíamos porque é que pararam de visitar este lugar, sendo que a única dificuldade era caminhar uns 20 metros do lugar reservado para estacionar até a beira, mas do carro mesmo já tinha uma bela visão. Além disso, tinha um casebre abandonado com uma varanda que o rodeava por completo. “Vou abrir um estabelecimento aqui, uma espécie de loja de conveniência, com comidas, porcarias, bebidas e souvenirs, talvez assim as pessoas passem a parar por aqui e prestar atenção nesse lugar maravilhoso.”, Raul me disse numa das vezes em que estávamos deitados no capô de sua camionete, esperando pelo pôr-do-sol. Eu ri, ele dizia isso sério e provavelmente era exatamente aí onde eu encontrava a graça. “Pare já de rir de mim!” “Desculpa, não consigo!”, eu disse entre risos. “Pare ou você sofrerá as consequências.” Ao ouvir isso, eu já sabia o que viria. Pulei do capô do carro pro gramado e saí correndo, ele fez o mesmo, me seguindo. Nossas corridas eram mais frequentes do que se pode imaginar. E ‘consequências’ pro Raul era sinônimo de cócegas. Ele tinha o dom de fazer isso. Eu sempre acabava beliscando ele quando tentava fazer, mas as mãos dele eram firmes e suaves, ele tinha a pressão certa para me fazer chorar de tanto dar risada. Ele me alcançou e então eu sofri por dois minutos que me pareceram duas horas. Minha barriga já doía. “E isso é pra você aprender a não rir dos meus sonhos!” “Desculpa! Não foi minha intenção, eu acredito em ti, sei que és capaz e quero estar contigo quando abrir a Loja do Mirante.”, eu ainda tinha alguns espasmos de risada, deitada no gramado, enquanto ele levantava. “Você estará.”, Raul estendia a mão para me ajudar a levantar, mas ele praticamente me levantava sozinho. Eu gostava também da forma que ele poderia me conduzir por onde quisesse, pelo menos 10 centímetros mais alto que eu, ele sempre dizia o quanto eu era leve demais. Apesar de todas as tardes maravilhosas que passávamos juntos, as noites que se seguiam eram desastrosas. Discussões e mais discussões ao chegar em casa. Discussões que já tinham feito Raul me pedir para terminar. “Não acho justo o quanto você sofre em casa por minha causa.”, ele disse segurando as minhas mãos, “Eu já falei com seu pai, mas ele já se decidiu que não gosta de mim.”. E ele tinha razão, mas mais injusto do quanto eu sofria por causa dele, era o quanto eu sofreria se não estivesse com ele, se não pudesse ter dias maravilhosos com ele, se não pudesse vê-lo como eu o via, beijá-lo como eu fazia e nem ter certeza que ele era meu, sabendo que ele poderia ser. Isso seria mais injusto que qualquer outra coisa. Se me desentender com meu pai era o fardo que eu teria que carregar por amar Raul, eu o faria sem pestanejar e, depois de um tempo, eu já nem dava margem para as discussões com ele, só ouvia as reclamações em silêncio e depois ia fazer o que tivesse que fazer em casa. Quiçá a frustração maior do meu pai é que meu namorado estudava comigo na melhor escola da cidade. Cidade pequena não tem muitas boas opções então ele não me trocaria de colégio. Apesar de namorarmos, não sentávamos juntos na sala ele sentava na fileira ao lado da minha, mas no fundo da sala, enquanto eu sentava na frente, não só precisava como gostava de prestar atenção na aula. Mas nos intervalos e na hora de ir embora, eu era dele. Ademais, foi na escola que nos conhecemos, ele era o amigo do terror da sala. Trevor era insuportavelmente irritante. Era o típico garoto reprovado, que já desistiu de sair da escola e quer só zoar. Não parava de falar um segundo, discutia com a grande parte dos professores, dava em cima da professora de Biologia e da professora de Geografia, que aceitavam. Eu o odiava, principalmente porque sempre que ele, supostamente, errava a mira, a bolinha de papel acertava em mim. Mas se não fosse pela vez que eu fui devolver arremessando o papel nele e acertei Raul sem querer, talvez nunca tivéssemos ficados juntos, então agora sou grata ao Trevor e ele nem é mais tão irritante comigo. Apenas comigo. Já era verão e as chuvas repentinas começaram. “Vem, amor, coloca meu casaco na cabeça.”, Raul me cobria com a sua blusa para que eu não me molhasse no caminho para o carro. Funcionou. Mas ele estava encharcado. “Raulzito, você precisa parar de cuidar mais de mim do que de si mesmo, senão eu vou ter que começar a cuidar de você quando você ficar doente por minha culpa.” “Será que não percebe o que eu estou fazendo?”, ele me olhava com um sorriso de canto, um sorriso de quem está aprontando, enquanto funcionava o carro, “É isso mesmo que eu quero, você cuidando de mim.” “Vai sonhando, meu ego é muito grande para isso.”, meu semblante era sério, eu olhava através do parabrisa, desviando totalmente do olhar dele, mas ele sabia que era brincadeira. “Você precisa parar de me maltratar, sabia?”, ele se fazia de vítima, dando continuação à minha brincadeira. “Quando eu parar de te maltratar, seu amor por mim acaba. Conheço vocês homens, minha mãe já falou muito sobre vocês.” “Quem te deu seu primeiro beijo mesmo?” agora era a vez dele de se vangloriar, ele sabia que eu não tinha beijado ninguém antes dele. “Ahm? Quem? Eu?” falava tão rápido que não me dava tempo para respondê-lo. Eu só ria. “Ah, então acho que você não conhece nós homens.” Tão infantil quanto eu poderia ser, mostrei a língua pra ele, que revidou jogando meu cabelo na minha cara. “O que você acha de fazermos um piquenique como almoço? Mas com comida comprada. Lá na casa do mirante. Pode chamar alguém, se quiser.”, apenas acenei que sim para o convite. “Mas eu prefiro que seja só nós dois, já vai começar fase de provas e eu terei que passar mais tempo em casa.” “Comida japonesa ou fast food?” “Japa.” minha resposta deu espaço para a piada mais velha que existe sobre comida japonesa, “Quero comer um japa hoje.” e eu ria demasiadamente da piada, sou fã dpiadas idiotas. O olhar de desaprovação dele só fez minha risada se intensificar. Compramos yakisoba e sashimi, pegamos nossos pacotes de comida e fomos para o mirante. Para avisar minha mãe de que não almoçaria em casa, mandei uma mensagem de texto, meu pai nunca comia em casa então a princípio não teria problemas. Sentamos lado a lado na varanda da casa abandonada, encostando-nos na parede. “Nada mais tranquilizador que almoçar com essa vista.” Eu apenas sorri com o comentário dele. Nós já estávamos quase terminando nosso almoço e comecei a viajar em pensamentos sobre um futuro onde estaríamos morando naquela casa, mas agora reformada e com dois andares, moraríamos no de cima e embaixo seria a loja de conveniências que ele tinha mencionado alguns dias atrás. Então pensei no meu pai e em sua desaprovação. Será que algum dia ele aceitaria? Eu esperava que sim, porque não conseguia imaginar alguma outra coisa para meu futuro nesse momento, podia variar as profissões, a casa, a situação, mas nunca o rapaz que estaria ao meu lado. Eu tinha conhecimento de que tinha apenas dezessete anos e a vida toda pela frente para querer dizer que tinha encontrado o amor da minha vida, entretanto se alguém algum dia quisesse superar o meu atual namorado, teria que se esforçar muito. “O que tem de errado?”, meu semblante deveria ter transformado-se do sorriso que dei ao ouvir o comentário dele para meu pensamento sobre meu pai, já que ele me olhava com um ar de preocupação. Eu só chacoalhei minha cabeça negativamente, pronunciei ‘nada’ baixinho e mexi meu yakisoba com o hashi e levei o que faltava até minha boca pra me manter ocupada. “É alguma coisa com seu pai?” Sua capacidade de adivinhar o que eu estava pensando chegava a me assustar. Meu choque com sua adivinhação foi tamanha que demorei um pouco pra responder. “Não… não…” ainda terminava de mastigar e meus olhos ainda estavam parados na movimentação do mar, ondas que quebravam ao longe, pequenos pontinhos pretos entre elas que me faziam acreditar que eram surfistas. Imaginei se eu parecia num comercial de shampoo já que eu podia sentir que o vento que vinha de encontro conosco estava balançando meus cabelos no espaço que tinha. Ele colocou sua caixa de yakisoba de lado ao terminar de comer, eu fiz o mesmo, ele passou um dos braços atrás do meu pescoço e me puxou para mais perto dele. Antes que ele tentasse me questionar, fui eu quem indaguei desta vez. “Alguma vez você já pensou sobre o futuro?” Não houve uma resposta audível, talvez se eu não estivesse com a cabeça encostada em seu peito, eu não saberia que ele tinha dado uma resposta. A não ser que eu estivesse olhando para ele, já que foi apenas um aceno afirmativo com a cabeça. “O que você vê?” Sua demora me fez acreditar que ele não me responderia e de fato foi o que aconteceu. “O que você vê?” ele repetiu minha pergunta. Desencostei de seu peito, o suficiente para poder encará-lo. “Estou falando sério, Raul. O que você vê?” Agora era ele quem desviava o olhar, fixando à frente, era sua vez de observar os possíveis surfistas. “Você…”, ele se demorou mais alguns segundos nos surfistas e então me olhou, eu já não olhava mais para ele, estava procurando o que ele via de tão interessante à frente, ele afagou meus cabelos e ainda me olhando repetiu mas com frase completa. “Eu vejo você.” Eu deixei que ele me deitasse novamente em seu peito depois que eu sorri aprovando sua resposta. Selei meus lábios nos dele e voltei a cabeça na posição em que ele tinha me colocado. Havia gostado de sua resposta, porém eu sabia que como ele respondeu, ele gostaria de saber o que eu via. Eu não tinha certeza do que via. Então antes que ele pudesse me perguntar, já comecei a me levantar para correr. “Ei, o que VOCÊ vê?”, mas já era tarde demais, eu já pulava da varanda e começava minha maratona. Apesar de toda minha demonstração de afeto nessas memórias que vos conto, acredito que eu não era tão aberta assim com o moreno que dominava meus pensamentos. Eu nunca respondia diretamente o que ele queria saber, enquanto ele me dava todas as informações que eu pedia. Eu sempre dava um jeito de fugir das especulações que ele tentava fazer sobre meus sentimentos, assim como disse pra ele no carro, minha mãe me disse muitas coisas sobre os homens e uma delas, talvez a regra mais importante, é que eles nunca devem ter certeza sobre nossos sentimentos, porque este é o início do fim. Algumas vezes, como nessa pergunta, eu fugia literalmente, correndo, forçando-o a correr atrás de mim, dando-me algum tempo para elaborar algum assunto que trocasse a atenção dele. Mas foi a minha atenção que mudou. Olhei para trás para ver a distância que estávamos e, para minha surpresa, ele estava muito atrás de mim. Tossindo em demasia. Voltei correndo ao seu encontro. “Você está bem, Raul?” O rapaz balançou a cabeça positivamente e continuava tossindo. “Melhor irmos embora, não acha? Vamos sim.” Já o conhecia o suficiente para saber que ele diria que não precisava ir embora, assim que pudesse falar. Mas eu já estava me sentindo culpada por sua tosse, ele tinha se molhado para sair da escola para me proteger da chuva e o vento naquele lugar era inexplicável, um pouco excessivo. Entramos em sua F1000 e ele me deixou em casa antes de ir embora. Nosso beijo de despedida foi inexplicavelmente intenso, acabou um pouco rápido, mas nunca tinha sido tão bom. Eu já estava saindo da camionete e resolvi voltar para dar mais um abraço e selar nosso tchau com um pequeno beijo. Dei uma risada e tossiu ao sorrir pra mim. “Eu te amo”, ele sussurrou. “Eu te amo”, sussurrei em resposta. Não éramos o tipo de casal que ficava de melação, tínhamos repetido essa frase poucas vezes e esse era mais um dos pontos que eu tinha listado para nos separar dos outros casais, os comuns. Por chegar mais cedo que o normal em casa, não tive problemas com meu pai nessa noite. Um jantar calmo e até aconchegante. Liguei para saber como ele estava e ele tinha piorado, estava a caminho de um Pronto Socorro, uma vez que ele sofria de bronquite crônica e indubitavelmente a chuva e o vento tinham piorado. Desliguei o telefone para que ele fosse atendido pelo médico, no entanto minha preocupação foi a mil. “Amor, já estou medicado, pode dormir tranquila (espero que já esteja dormindo). Acho que amanhã não vou à aula. Mas podemos sair à tarde se quiser. Dorme bem, s2”, só li a mensagem de texto pela manhã. Como ele mesmo tinha previsto, não foi à aula pela manhã e nem respondeu minhas mensagens, certamente estava dormindo, já que sua mensagem tinha sido me enviada mais de três horas da manhã. Eu já havia avisado minha mãe da situação de Raul e ela mesma tinha me dado a ideia de visitá-lo e cuidar dele na parte da tarde. E foi o que fiz. Perto da hora da saída, ele me respondeu, dizendo que tinha acabado de acordar e que eu poderia visitá-lo, se quisesse. E fui. Os pais dele me adoravam, extremamente o inverso de meu pai com Raul. Passei a tarde toda cuidando dele na beira de sua cama. “Falei que eu teria que cuidar de você.”, ele riu. “Eu só estou te testando, na verdade, para ver se seu ego é tão grande mesmo.”, eu teria acreditado em suas palavras pela expressão séria com que ele disse aquilo e manteve, se não fosse pela tosse, muito semelhante à tosse de um cachorro, que veio a seguir. “Uh! Por pouco não me enganou!” ironizava-o para fingir que nao acreditei hora alguma. E foi nesse clima que ficamos a tarde toda. Assistimos a um filme qualquer que passava num canal qualquer e vi no relógio digital ao lado da televisão que estava na hora de ir embora. “Eu te levo pra casa.” “Capaz, fica deitado! Eu ligo pro meu pai.” “Prefiro te levar, é menos problema do que ele ter que vir até aqui. Vai parecer que você quer afrontá-lo.” “Alguma hora ele terá que se acostumar com a ideia.” Disquei o número de meu pai e liguei. Era incrível como eu só gastava meus créditos com meu pai quando ia pedir algo, caso contrário, ligava a cobrar. Avisei onde eu estava e a voz de descontentamento do outro lado da linha disse que já me buscaria. “Eu disse que te levaria. Você não precisaria passar por isso.” “Estou decidida a fazê-lo te aceitar, não quero mais isso, hoje eu terei essa conversa com ele. Nós não fazemos nada errado, Raul. Você é bom! Não existe um porquê para ele continuar te tratando desse jeito.” e foi o que fiz. Entrei no carro e meu pai começou a gritar comigo, eu já nem prestava mais atenção, deveria ser a mesma ladainha de sempre. “Ele não é bom o suficiente. Ele tem barba. Ele tem tatuagens. Ele atrapalha seus estudos. Ele não é da Igreja.”, esperei pacientemente até ele terminar de falar, ele desistia bem mais rápido quando eu não tentava argumentar. “Eu o amo, pai. Eu o amo desse jeito mesmo.” e ele tentou me interromper e eu levantei uma mão. “Agora é minha vez, você disse tudo o que pensava. Ele não é da Igreja, mas ele me respeita, eu acho que é o que eu espero de alguém que esteja comigo, respeito acima de tudo. As tatuagens não tem como ele tirar, mas todo o resto eu posso mudar, eu posso ajudá-lo a ser melhor. Não é isso que o Evangelho prega? Que eu devo amar ao próximo independente de seus defeitos? E ajudar os outros a melhorarem? A agirem da forma correta e tudo mais? Estou fazendo isso, pai.” Acredito que foi nessa hora que eu o convenci que estava certo. E só acredito nisso porque levei um tapa na cara. “Nunca mais use as doutrinas para defender esse marginal. Eu odeio ele.” A última frase ele disse num sussurro quase inaudível quando nós já estávamos chegando em casa. Segurei meu choro ao máximo, entrei em casa correndo e fui direto para meu quarto. Mamãe queria saber o que tinha acontecido, mas eu não queria ver ninguém, não queria falar com ninguém. Meu celular apitou pelo menos umas oito vezes naquela noite, mas eu não queria saber quem era. Não queria. Queria ficar sozinha. Meu pai nunca entenderia. O que Raul tinha feito de tão errado? Por que ele não podia se conformar? Já era quase oito meses e eu nunca cedi às tentativas dele me trancar em casa ou me afastar do meu namorado e ele ainda não tinha entendido. Meu celular tocava freneticamente, o modo silencioso não era suficiente para interromper o barulho, porque ele continuava vibrando e o som irritante continuava, então arranquei a bateria e joguei do outro lado do quarto. Finalmente o silêncio, que só era quebrado pelos meus soluços. “Que merda de vida.”, eu repetia. O telefone de casa tocou. “Que merda de vida! Só quero silêncio!”, eu resmungava no travesseiro. “ALICEEEEEEE! ALICE, FILHA, TELEFONE PRA VOCÊ.”, com certeza era Raul preocupado comigo, mas eu não queria falar com ele, não nesse estado em que eu me encontrava, ele ficaria preocupado. “Fala que eu ligo depois.” tentei gritar, mas minha voz estava chorosa e travou numa altura. “Filha, acho bom você atender.” minha mãe já estava do outro lado da porta. Eu destranquei e sussurrei para perguntar quem era. Mas minha mãe desviou o olhar de mim, tinha alguma coisa errada com ela, com os olhos dela. Atendi ao telefone vacilando. “Quem é?” “O..Oi Alice.. Alice… Eu gosto tanto de você, querida. Tanto. Você melhorou nosso filho, você o melhorou tanto.” A voz era da mãe de Raul, mas eu não entendia porque ela estava chorando. “Você sempre foi uma menina boa. Oh, Alice..Oh!” “O que aconteceu, Sra. Bastilieri?”, o sobrenome deles era a única coisa que ainda restava da família com descendência italiana. Eu já sabia o que tinha acontecido. Minhas pernas tremiam e eu não conseguia mais me equilibrar sobre elas, me encostei na parede, minha mãe tinha ido para o banheiro. Provavelmente não queria que eu a visse chorando antes de ter motivo para fazer o mesmo. “Nosso Raul… Ele… Oh, Alice! Não o teremos mais.” “Nós o teremos sim. Nós o teremos. Ele estava me ligando. Eu posso falar com ele agora. Passa o telefone pra ele.” ele estava me punindo por não tê-lo atendido, queria me pregar uma peça, com certeza era isso. Nada de errado poderia ter acontecido com ele, foi muito pouco tempo para algo assim. Eu esperava ele atender, mas eu só ouvia os soluços da mãe dele e de alguém mais que parecia estar perto dela. Minha garganta estava estranha, uma bola de ar tomava conta dela e eu não conseguia engolir. Minhas amígdalas davam a impressão de estarem inchando e tinha algo muito errado. “COLOCA ELE NO TELEFONE! MANDA O RAUL ME ATENDER.”, sua mãe já não conseguia mais. E então a voz do pai dele tomou conta do fone. “Sentimos muito, Alice. Espero que possas continuar nos visitando, gostamos muito de você. Mais tarde daremos mais detalhes. Agora precisamos lidar com algumas coisas… Com a despedida.” O tempo todo eles evitaram dizer o que tinha acontecido e isso me destruiu ainda mais. Eu não o tinha atendido. Eu precisava saber o que ele queria. Arrastei-me pelo meu quarto vasculhando todos os possíveis lugares em busca da bateria que eu tinha arremessado. Meu choro incessante me irritava, meu soluço me irritava, estar no meu quarto me irritava, não encontrar minha bateria me irritava. Levei pelo menos três minutos para encontrá-la, estava caída debaixo da minha cômoda, a qual tinha uma foto minha e de Raul, ambos fazendo careta, com a bateria numa mão, peguei o porta-retrato com a outra e levei ambos para cima de minha cama. Eu olhava sorrindo para a nossa fotografia enquanto colocava a bateria em seu devido lugar, de onde eu nunca deveria ter tirado. “Isso não é verdade, não pode ser verdade. Eu vou ligar meu celular e ligar para ele e ver onde ele está.”, não parei de repetir até que a tela do meu celular se acendeu. Todas as três ligações eram do Raul. Com três mensagens na caixa postal. E oito mensagens de texto. As li na ordem em que tinham sido enviadas. 1: “Amor, foi tudo bem? Seu pai falou muita coisa?” enviada às 18:10. 2: “Alice, me responde.” enviada às 18:17. 3: “Ele não tirou seu celular, certo? Me responde, estou ficando preocupado.” enviada às 18:23. 4: “Ok, desisto, não quer falar comigo, não fale.” enviada às 18:29. 5: “Brincadeira amor, fale sim! Inclusive eu quero mesmo é que você fale comigo!!!!!!!!!!” enviada às 18:33. 6: “O que seu pai fez?” enviada às 18:37. 7: “Definitivamente, algo muito ruim aconteceu! Você não está nem atendendo ao celular.” enviada às 19:45. 8: “Estou indo até aí. Você querendo ou não. Não me importo com o que seu pai acha de mim ou da minha visita, eu não vou desistir de você. Eu te amo.” enviada às 19:52. Liguei para a caixa postal para ouvir as mensagens, na primeira ele não disse nada. “Amor, me liga de volta quando ver isto, ok? Eu acho que estou parecendo um pouco psicótico, você pode estar tomando um banho e eu aqui pensando um milhão de tragédias que podem ter acontecido. Haha, beijos.” tinha na segunda. “Última tentativa, estou no meu carro, indo até aí. Quando eu chegar aí vou…” o barulho que seguiu parecia uma série de latinhas de refrigerante sendo amassadas e vidros sendo quebrados. E eu nunca soube o que ele faria se tivesse conseguido chegar aqui. Meu choro intensificou-se e agora até soluçar doía, pensar doía, abrir os olhos doía. Tudo doía. Lixo, trapo, verme, podre eram adjetivos bons demais para mim. Que tipo de pessoa egoísta era eu? Só pensei em mim e na minha raiva. Eu deveria ter compartilhado com ele. Ele era meu namorado! Mas alguém mais tinha culpa nisso. De onde tinha tirado forças para atravessar o corredor e descer as escadas correndo, eu nunca descobri. Encontrei meu pai no sofá da sala, sentado, olhando para o chão. Parei de correr na porta da sala, com todas as minhas veias palpitando, eu podia sentir meu rosto ficando vermelho, porque ele esquentava a cada passo que eu dava. Escutei minha mãe chegando na sala atrás de mim, entretanto não olhei para trás. Eu tinha um foco. Meu pai percebeu o que se passava e levantou-se, seus olhos assustados e muito abertos, ele olhava pra mim um pouco temeroso mas com pena, eu podia ver a pena por trás daqueles olhos odiosos. Minhas sobrancelhas franzidas e com o soluço que não parava. Eu era só ódio. “Você fez isso!” eu comecei quando parti pra cima dele, dando socos no peitoral forte de meu pai. “Você o fez ir embora! Por que você só não aceitou?” Eu repetia os movimentos tentando inutilmente fazer com que meu pai sentisse a dor que eu sentia, compartilhasse da revolta que eu estava passando. No entanto, a única reação dele era tentar me abraçar. Eu não queria ser abraçada, me desvencilhava dos braços dele e então dei um passo para trás. “Vamos! Diga, repita agora, diga que o odeia! Diga que o odeia! Você… Você….” ele tinha conseguido me abraçar, me pressionou contra o peito dele e eu não conseguia mais sentir raiva. “Por que? Por que?” eu disse por fim. “Shh.” balbuciou meu pai na tentativa de me acalmar. Funcionou por alguns segundos, tempo suficiente para ele passar a mão pelos meus cabelos. E então eu o afastei. Mais do que nunca eu precisava ficar sozinha. Peguei as chaves do carro que estavam em cima da mesa e saí pela porta. Não sei se meus pais não perceberam ou só não tentaram me impedir, mas julgando pelo meu estado emocional, a primeira opção era mais correta. Funcionei o carro e dirigi até o mirante. Eu não queria me despedir dele, eu não queria deixar para trás tudo o que tínhamos vivido. Todas as brincadeiras. Sentei na varanda da casa, tudo era escuro demais ali à noite. Eu fechava os olhos e podia nos ver correndo pelo gramado, podia ver ele me fazendo cócegas, podia sentir ele ao meu lado, me abraçando, querendo saber o que eu via no meu futuro. Eu fui caminhando lentamente até a beira do mirante. “Eu vi você. No meu futuro, eu vi você.” e nessa hora eu entendi que eu não conseguiria ter um futuro sem ele.