quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

DO LATIM, OBLIVIUM



Eu me torno muito dependente de tudo que me faz bem. Isso faz com que qualquer coisa que me faça bem esteja predestinada a me fazer mal logo em seguida. E eu não sei lidar com isso.

E foi no momento que eu percebi isso, que eu entendi que deveria começar a esquecer algumas coisas.

Nunca fui uma pessoa fácil de lidar. Teimosa e persistente, raramente conseguem me convencer que minha verdade está equivocada; mesmo que esteja, meus argumentos são sempre muito bons. Nos relacionamentos, isso toma uma proporção maior.
Sou muito intensa e muito verdadeira com todo e qualquer sentimento meu, seja bom ou ruim. O problema está em querer reciprocidade e todos sabemos que lidar com seres humanos através da perspectiva da liberdade não funciona assim. Cada um tem seu tempo, cada um sente de uma forma. E eu sou demasiada intensa. Quando sinto, sinto muito, sinto demais, sinto exageradamente.
Não consigo sentir só um pouco, muito menos me esforço para conter meus sentimentos. O que também me torna muito impulsiva. E são todas essas peculiaridades que me fizeram estar aqui hoje registrando algumas memórias, algumas até não vividas, entretanto alguém pode se identificar e é para estes que eu escrevo.

Estou próxima à idade em que se pode morrer e ser lembrado. Não que eu seja alguém, ninguém me conhece, contudo grande parte dos ídolos da minha geração se foram nessa idade. E não vou negar que já passou pela minha cabeça incontáveis vezes o desejo de homenageá-los, estudo minuciosamente – à princípio, aleatoriamente, sem planos – a forma que cada um se foi e de quem gosto mais para poder ser mais fiel. E é quando me pego fazendo pesquisas nessa linha que eu percebo que, mesmo que eu saiba que muita gente se importa comigo, mesmo que tenha muita gente por perto, eu estou sozinha. E eu vou sempre viver esses sentimentos todos sozinha – mesmo que eu compartilhe. E eu vou sempre estar sozinha. Só eu vivi as coisas a partir do meu ponto de vista, só eu sei o que eu senti e o que eu sinto com cada ação e cada reação de tudo ao meu redor. Só eu sei quantas vezes coisas que eu toquei viraram pedra. Principalmente nos meus relacionamentos. Eu poderia facilmente ganhar o posto de Deus da Destruição, se eu fosse um personagem de Dragon Ball.

Eu causo um efeito bola de neve de desgraças com atos simples, que desencadeiam uma avalanche e eu vou só destruindo tudo o que foi bom, toda a fauna e flora que adornavam o romance que eu destruo. E é disso tudo que eu preciso me livrar, de todas essas memórias, de toda essa culpa e de todo esse sentimento que me corrói.

Já cansei de ouvir que as pessoas não estão preparadas para sentirem e para viverem na mesma intensidade que eu sinto e vivo as coisas. O que as pessoas não entendem é que eu não estou preparada também, mas eu não consigo fazer as coisas pela metade. Eu só sei ser sincera e ser clara e ser por inteira. Eu não consigo me privar conscientemente de algumas coisas, mesmo com medo, eu arrisco.

Eu vivo como se estivesse em um filme ou uma série daqueles cheios de clichês, eu amo clichês, eu sou clichê e eu queria um romance clichê. No entanto, as pessoas da minha geração foram educadas a fugir dos sentimentos. Que tudo isso só faz mal; agora tenho propriedade para afirmar que estavam certos, mas por vários períodos eu esqueço das dores que causam e me sinto a pessoa mais feliz habitando a troposfera. Nesses momentos, pode ser que haja alguém tão feliz quanto eu, mas mais feliz não há. E é por esses momentos que eu vivo, literalmente.

Até o dia em que eu aprender a esquecer a dor, esquecer sentimentos, esquecer a culpa, esquecer tudo. Até o dia do oblívio.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Hábito Inveterado


Por quanto tempo eu havia dormido?
Acordei atrasada e não tive tempo de tomar café da manhã ou dizer tchau à minha mãe. Vesti-me apressadamente, fiz a higiene pessoal com o capricho que o tempo me permitia e saltei para a rua quase correndo. Caminhei rápido até o ponto de ônibus mais próximo de minha casa e só quando parei para esperar por ele, notei a mudança.
Quebrei a tela de meu celular no dia anterior e deixei-o para arrumar logo após o trabalho em um shopping próximo à minha casa e, para meu azar, a tela estava em falta e só teriam como arrumar no fim do dia seguinte, no caso hoje. Não tendo o despertador do celular, tentei me ajeitar com um antigo de pilha, emoldurado de acrílico rosa, que deveria ter pelo menos uns doze anos. Claro que ele não despertou pela manhã e por isso eu havia perdido a hora.
Por quanto tempo eu havia dormido?
Tinham mais pessoas no ponto de ônibus, mas nenhuma delas eram pessoas normais. Pareciam normais, mas havia algo de diferente, dava para sentir. Eu sorria e cumprimentava com um aceno de cabeça a todas as pessoas, mesmo que não as conhecesse. “Gentileza gera gentileza”, diziam vários cartazes colados pela cidade. Talvez só eu os lesse, uma vez que nunca sorriam de volta. Na verdade, muitas pessoas pareciam se assustar com meu comportamento; “simpática demais”, ouvi várias vezes; outras seguravam a bolsa mais perto do corpo; algumas atravessavam a rua.
Eu nunca soube se o problema estava na minha aparência ou se as pessoas haviam esquecido que pessoas boas existiam. Eu não as culpava, não nessa cidade. O índice de crime, de todos os tipos, apenas crescia a cada ano. Triste realidade. Mas lá estava eu, tentando aplicar em minha vida ensinamentos que tive a vida toda: na minha família; nas músicas que eu ouvia; com os grandes pensadores antigos e contemporâneos; nos livros que eu lia; no que todas as Igrejas, independente da religião, sempre pregaram; Amor ao próximo.
Cansei de levar tombo pelas minhas tentativas, mas nunca desisti, nem do amor, nem do próximo.
Fluxo de pensamento.
Por quanto tempo eu havia dormido, mesmo?
Parecia que algum tipo de vírus estava tomando conta na cidade, percebi assim que meu ônibus parou. Apenas eu e mais duas pessoas do ponto pegamos aquele ônibus. As pessoas que já estavam nele tinham a mesma aparência doentia que as que estavam no ônibus.
Recebi um sorriso em resposta do meu. Decidi que deveria me aproximar daquela moça, ela deveria ser imune ao vírus como eu parecia ser.
A não ser por mim, a moça, o motorista e o cobrador, todos os outros estavam de cabeça baixa, as que estavam sentadas olhavam para seus colos, as que estavam em pé olhavam para suas mãos livres, olhos fundos, rosto sem expressão. De vez em quando soltavam um risinho, mas logo voltavam àquela expressão mórbida. Chegava a ser apavorante estar ali rodeada por elas.
A moça trocava olhares comigo. Ela girou os olhos, olhando ao redor sem mexer a cabeça, voltou a fixar sua orbe em mim e arqueou as sobrancelhas, como quem diz “O que está acontecendo?”. Respondi pressionando meu lábios um no outro, como quem diz “Estranho, né?”. Ela deu de ombros.
Passamos mais alguns minutos nos olhando e eu estava próxima à minha parada. Pressionei o botão que solicita uma parada e o ônibus foi reduzindo a velocidade. Acenei para a moça com um aperto no coração em deixa-la ali com todas aquelas pessoas estranhas. E só quando saltei do ônibus, o aperto no meu coração mudou de motivo, era para comigo agora. As pessoas em torno do prédio em que eu trabalhava, também estavam daquele jeito.
O tempo que eu havia dormido já não era mais minha principal preocupação. Até porque parecia ter durado meses, se não, anos. Não era possível que as coisas tivessem mudado tão drasticamente em questão de poucas horas e que eu não tivesse percebido.
Olhei a hora no hall de entrada do prédio do meu trabalho e descobri que me atrasara apenas quinze minutos, o problema não estava no meu sono. Isso me acalmara.
O porteiro do prédio também estava normal. Ele era um senhor mais velho, já tinha mais cabelos brancos que castanhos em sua cabeça. Deu-me um bom dia sorridente e, se não fosse meu atraso, teria parado para conversar sobre essa mudança estranha nas pessoas. Restringi-me a responder seu bom dia com a mesma empolgação e correr para que a porta do elevador não se fechasse e me deixasse ali parada e esperando por mais alguns minutos.
O elevador não estava vazio, encontravam-se ali mais três pessoas. Os três estavam com àquela expressão.
Agora eu estava realmente assustada, uma das pessoas era uma das minhas colegas de trabalho. Ela nem percebeu que eu estava ali, olhava para suas mãos, como o pessoal em pé do ônibus.
Ela só foi notar minha presença quando entrávamos pela porta do escritório em que trabalhávamos. Ela me deu bom dia com um sorriso apagado e entrou rápido, ainda olhando para as próprias mãos.
Tínhamos duas recepcionistas, uma delas bem jovem e a outra mais velha. A jovem parecia ter sido pega pelo vírus, a mais velha me deu um bom dia acalorado, ao qual eu respondi com o mesmo tom.
Era bom saber que tinha mais pessoas que eram imunes.
Ao sentar em minha mesa, liguei meu notebook o mais rápido possível para pesquisar sobre “vírus afetando a humanidade”.
O que apareceu foram vários sites contando a história dos vírus ao longo do tempo.
Então pesquisei “vírus atingindo as pessoas”.
Achei muitos vírus.
Zika, dengue, h1n1, chikungunya, até vírus de computador. Mas nenhum que parecia sequestrar o cérebro daquela forma.
Minha chefe, não tão jovem e nem tão velha, chegou para mim com algumas tarefas para o dia e perguntando de algumas coisas que ela havia me passado no dia anterior. Respondi às suas perguntas e peguei as tarefas do dia. Minha pesquisa era importante, mas eu tinha muita coisa a fazer.
Eu não fazia horário de almoço, dividia minha “hora” em 20 minutos, três vezes ao dia, para poder cumprir as ordens da minha nutricionista e conseguir fazer seis refeições por dia. Uma conversa com minha chefe foi o suficiente para que ela percebesse que seria muito mais produtivo do que me deixar ficar por uma hora procrastinando e voltar com aquela preguiça-pós-almoço. Enfim, eu carregava minhas refeições em uma mochila e fazia minhas refeições em minha mesa mesmo; o que dificultaria minha pesquisa de campo sobre o vírus.
Tudo bem, eu teria que passar pelo shopping no fim da tarde, muito provavelmente veria muitas pessoas por lá, conseguiria ter uma boa base.
Enquanto eu fazia meu trabalho, meu pensamento voltava esporadicamente ao vírus. Seria mesmo um vírus? Algo que afetaria o modo de agir das pessoas? Parecia com aqueles filmes em que extraterrestres invadem a terra e colocam as pessoas para agir num padrão imposto por eles e suas tecnologias. Ou então um daqueles filmes de apocalipse zumbi em que o cérebro das pessoas perde sua principal função e as pessoas passam a agir num padrão ignorante, sem mais pensar, só seguindo a instintos.
Ri dos meus pensamentos manipulados por filmes e séries recentes e voltei ao trabalho.
Hora ou outra, eu parava para prestar atenção nos colegas de trabalho e percebi que, se não fosse por mim e pela moça do ônibus, eu poderia separar as pessoas que estavam agindo estranhamente em pessoas jovens, enquanto as mais velhas seriam imunes. Mas eu e a moça quebrávamos esse padrão. Então tentei encontrar outro padrão.
Para meu azar, minha única amiga no trabalho tinha faltado hoje. As outras pessoas eram apenas colegas. Ninguém que eu confiasse o suficiente para lançar minha teoria apocalíptica e que não tinha medo que acreditasse que eu precisasse de um psiquiatra.
O fim da tarde se aproximava. Com ela, o fim do expediente e a volta do meu celular.
Assim que o horário chegou, todos desligavam suas máquinas e se despediam. Demorei mais cinco minutos no Google, procurando por alguma notícia recente publicada sobre a maneira estranha que as pessoas estavam agindo e nada apareceu. Ou pelo menos eu não havia digitado alguma palavra-chave que correspondesse com o que estava acontecendo.
Desisti e ainda peguei o elevador com mais pessoas. Três jovens e duas meia-idade, meu primeiro padrão se repetia, se não fosse por mim.
Tentei tirar essas teorias da minha cabeça enquanto me despedia de colegas e do porteiro no saguão. No entanto, assim que cheguei ao ponto de ônibus, foi ainda mais perceptível a quantidade de pessoas contaminadas, todas jovens. Pessoas com uma vida toda pela frente, algumas que ainda nem saíram da escola, que nem decidiram o que fazer com suas vidas... Por que essas seriam as escolhidas? Tão imaturas. Se fosse mesmo por uma invasão extraterrestre, não seria melhor se recrutassem pessoas que já tem alguma noção de guerra, os soldados, os exércitos em geral...? Ou talvez os alienígenas não precisassem disso, precisassem de pessoas novas e saudáveis.
Após alguns ônibus, o meu estava se aproximando, eu e mais algumas pessoas fizemos sinal e ele parou. Entramos. Paguei pela minha passagem e continuei meu estudo. Minha teoria começava a se desfazer, alguns homens com aparência de pai de família, de 30 a 45 anos e algumas mulheres que aparentavam a mesma faixa etária também estavam perdidos em seus devaneios. Olhando com aparência robótica para a altura das mãos. Notei que os dedos se moviam de vez em quando, mas as expressões não mudavam.
Zumbis, com certezas são zumbis.
Ocorreu-me que a nova geração, aquela que já nasceu com toda a tecnologia em alta, os chamados nativos digitais, era definida como Geração Z. Geração Zumbi. Ri, tentei me conter sem sucesso e continuei rindo. Algumas pessoas, saíram do seu transe e me olharam, balançaram a cabeça desaprovando e voltaram sua atenção para suas mãos.
Desci no ponto próximo ao shopping e me dirigi a ele sem pressa, observando todas as pessoas que passavam por mim. Definitivamente, a maioria dos atingidos eram os jovens, mas existiam exceções consideráveis. Percebi uma mãe que andava com sua filha, a garota pedindo algo para ela, que não dava atenção porque o que tinha em suas mãos parecia muito mais interessante a ela do que sua filha.
Eu não conseguia lidar com o pensamento de que algo seria mais importante que um filho, só podia ser alguma doença, não era possível. Não conseguia lembrar de nada que pudesse se sobrepor a um filho. E infelizmente, aquela não era a única mãe ou pai que agia daquele modo.
Que doença do demônio! Pensei. E não era apenas os pais, alguns casais também pareciam muito mais interessados com o que tinham nas mãos, do que com seus parceiros.
Comecei a me estressar de verdade, não com as pessoas em si, mas com suas reações. O que poderia dar mais prazer do que passar um tempo com quem se gosta? Como alguém poderia perder esse toque, essa vontade de estar com alguém que gosta, que ama, trocar todas as coisas boas, conversas, brincadeiras, tempo juntos para ficar encarando as mãos.
Não era possível que alguém tivesse criado um vírus que fizessem as pessoas perderem isso, era bem mais fácil que alienígenas tivessem implantado algum tipo de tecnologia robótica na cabeça dessas pessoas, talvez trocado pelo cérebro.
Precisei de um tempo no banheiro do shopping, antes de pegar meu celular e me mandar dali, conferir se minha família sofria da mesma doença. Eu desejava do fundo do meu coração que não.
Lavei meu rosto com a água gelada que saía da torneira. Sequei no papel-toalha e decidi que não mais observaria as pessoas, só iria buscar meu celular no conserto e retornaria para a casa.
O atendente da loja de conserto de celulares parecia normal. Conversou comigo, buscou meu celular, eu paguei e ele, antes de me entregar, mostrou que estava tudo funcionando normalmente agora.
Assim que conectei o celular à rede 3G, começou a chover notificações. Fiz todo o trajeto até minha casa dando pequenas olhadelas para a frente, para me certificar de que não esbarraria em nada e em ninguém. Já conhecia o caminho, poderia andar por ali vendada, se estivesse vazio. Continuei a verificar todas as mensagens que chegaram nessas vinte e quatro horas desconectada. A maioria era mensagem desnecessária, minha amiga do trabalho avisando que estava com desarranjo intestinal por isso não compareceria ao trabalho, alguns e-mails de lojas... Nada útil.
Desejei melhoras à minha amiga, antes de virar a primeira esquina. Mandei uma mensagem para minha irmã, perguntando se estava tudo bem, se ela tinha sentido alguma mudança na mamãe ou nela mesma, talvez no papai. Abri meu Facebook para ver se tinha recebido algo importante: notificações de grupos bobos que nem me dei ao trabalho de ler; notificações de eventos que não conferi quais eram; notificações de aniversário que só abri para ver se não tinha alguém muito próximo ali, mas não tinha; rolei um pouco a timeline, para ver se alguém tinha comentado as ações estranhas das pessoas hoje, mas nada apareceu.  Mandei uma mensagem para alguns colegas da faculdade, perguntando sobre um trabalho. Mandei uma imagem engraçada no grupo da minha família no WhatsApp, mandei a mesma imagem também no grupo do trabalho e no grupo dos meus amigos. Avisei nos três grupos que eu já tinha celular novamente. Avisei também o rapaz com quem eu conversava a mais de um mês e que eu achava que gostava dele. Torci para que ele não tivesse sido contaminado. Recebi uma pergunta da minha irmã:
Como assim estranhos? Você vem pra casa ou vai direto para a faculdade?
Respondi que iria para a casa. Perguntei se eles não estavam com um olhar meio estranho e olhando tempo demais para as mãos. Ela ainda estava online então logo começou a digitar, segundos depois recebi outra mensagem:
Você quer dizer com o olhar que você fica enquanto mexe no seu celular?
E só então eu percebi que a única coisa diferente que aconteceu hoje foi eu ter ficado sem o meu celular. A tecnologia usada para trocar cérebro por algo robótico não era extraterrestre, era nossa. Trazendo para mais perto, as pessoas que estavam espacialmente longe; afastando as que estão ao nosso lado.
 

sábado, 23 de maio de 2015

Cancela! Você contou errado.

Ei, ei, ei! Amigo! Cancela isso dai! 

Você me disse que seria nos seus 24, você ainda tem 21. Para! Ainda falta três anos e você é bom em matemática. Com quem eu vou falar mal de todo mundo e quem vai falar mal de todo mundo pra mim? Como vou ficar sabendo todas as fofocas? Eu sei que fazia quase um ano que a gente não fofocava, mas a nossa amizade tem esses hiatos, já estava acostumada, você já estava acostumado. Mas um hiato desse tamanho? Eu não estava preparada. Quem estava? Quem esperava? Não dá pra acreditar. 

Prometi a mim mesma que não iria postar nada público, porque nós nunca fomos assim, a gente se via, ria, saía, zoava o mundo e ninguém precisava saber, porque era nosso role e nós somos muito egoístas pra dividir com alguém. Mas como deixar de te homenagear? Como fingir que não tenho um milhão de memórias boas e outras quinhentas ainda melhores? 

Você sempre foi uma espécie de porto-seguro, onde sempre me apoiei quando precisei; e eu sei que era essa pessoa pra você também. Não é à toa que nosso conflito de ego nunca nos afastou de verdade. Sempre fomos bons em deixar nossos egos comandarem tudo, exceto quando precisávamos um do outro. Pra rir, pra nos distrair, pra buscar conselhos sinceros, pra ficar em silêncio ou por um abraço fraternal, daqueles que sabemos que somos amados do jeito certo, sem interesse, sem julgamentos, sem paixão... Você sempre foi muito importante pra mim e você sabia. 

Cansei de te falar pra não confiar em outras mulheres, só eu era confiável por não pensar exatamente como uma mulher... Mas você insistia que a Katia Flavia era melhor que eu nisso... Desculpa por não ter insistido mais nessa teoria, eu não esperava. Não, esperava algo muito maior, você não mereceu. 

Agora a única coisa que me resta é desejar que o Pai Celestial te guarde um bom lugar e que seja perto do seu pai. Descanse em paz, amigo. Tem uma parte do meu coração que está em luto e essa parte pertencerá sempre a você.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Can't Hold Us

Meu pai não via nada de bom no meu namoro, dezessete anos, meu primeiro namorado, eu já tinha previsto essa reação. Raul deixava a barba por fazer, não gostava de seu rosto angelical que lhe dava a aparência de ser mais novo do que realmente era. Eu gostava. Entretanto gostava da barba também. Eu gostava de bastante coisas nele, na verdade. O efeito de sua voz sobre mim era surpreendente, me enchia de euforia e calma simultaneamente. Seus olhos sempre tão sinceros e tão brilhosos, pareciam que eram lustrados com a paciência de uma bibliotecária. Sua boca nem carnuda e nem fina, combinava exatamente com a pinta do lado direito acima do lábio superior. E o rosto jovial que dava a forma perfeita para o conjunto formador da face. Tudo nele me agradava. Inclusive o cheiro dele, não o perfume que ele usava, mas o cheiro dele mesmo. Dizem que na curva formada pela clavícula, também chamada popularmente de saboneteira, pode-se sentir o verdadeiro cheiro da pessoa. E que você só se apaixonará verdadeiramente se você gostar do que sentir. Talvez sejam só boatos, mas funcionou comigo. Eu nunca tinha me deixado levar pela ‘baboseira do amor’, sempre achei engraçado e azucrinei aqueles que se apaixonavam no meu círculo social e agora, pela primeira vez, eu era quem merecia aquelas piadas que fiz, porque eu estava irreconhecível. Boatos que isso acontece com todo mundo. Mas eu não queria ser todo mundo, sempre achei qualificações e características que separavam a mim e Raul do resto dos apaixonados. Para começo de conversa, nós sabíamos a hora de estar com nossos amigos e a hora de estarmos sozinhos, sabíamos distinguir coisas a fazer com eles das coisas que deveríamos fazer quando estávamos apenas nós dois. E isso não significa que tenhamos ido além de onde se deveria ir quando estamos namorando há apenas sete meses. Sete meses e meu pai ainda não tinha aceitado. Minha mãe acreditava que éramos o casal mais lindo do mundo. Meu pai achava que ele não era bom o suficiente: “Aquela barba… Ele não se importa nem com a aparência, vai se importar com você? Cheio de tatuagens, parece um delinquente.”, acabava sempre aí nossas discussões sobre o quanto meu namorado poderia ser bom pra mim. E claro que por minha pseudodesobediência, eu já não tinha mais tanta liberdade pra sair. “Foco nos seus estudos!”, “Você tem que entrar pra faculdade esse ano.”, “Você tem saído demais.”, sempre as mesmas desculpas. Sem contar que Raul não era da nossa Igreja e isso era realmente importante para o meu pai. Mas eu sabia que poderia levar Raul para lá no fim das contas, porque apesar de parecer desleixado, ele era muito vaidoso e era um bom rapaz. Boliche, cinema, jantares e praia eram nossos programas com os amigos. Quando queríamos nosso espaço, ele me levava em sua camionete Ford F1000 velha, bem velha na verdade, mas bem cuidada, para os campos que tinham perto da cidade, tinham várias chácaras ao redor da cidade, e no caminho para elas tinha um antigo mirante, antigo pela idade e pela falta de uso, mas com uma vista maravilhosa, sempre discutíamos porque é que pararam de visitar este lugar, sendo que a única dificuldade era caminhar uns 20 metros do lugar reservado para estacionar até a beira, mas do carro mesmo já tinha uma bela visão. Além disso, tinha um casebre abandonado com uma varanda que o rodeava por completo. “Vou abrir um estabelecimento aqui, uma espécie de loja de conveniência, com comidas, porcarias, bebidas e souvenirs, talvez assim as pessoas passem a parar por aqui e prestar atenção nesse lugar maravilhoso.”, Raul me disse numa das vezes em que estávamos deitados no capô de sua camionete, esperando pelo pôr-do-sol. Eu ri, ele dizia isso sério e provavelmente era exatamente aí onde eu encontrava a graça. “Pare já de rir de mim!” “Desculpa, não consigo!”, eu disse entre risos. “Pare ou você sofrerá as consequências.” Ao ouvir isso, eu já sabia o que viria. Pulei do capô do carro pro gramado e saí correndo, ele fez o mesmo, me seguindo. Nossas corridas eram mais frequentes do que se pode imaginar. E ‘consequências’ pro Raul era sinônimo de cócegas. Ele tinha o dom de fazer isso. Eu sempre acabava beliscando ele quando tentava fazer, mas as mãos dele eram firmes e suaves, ele tinha a pressão certa para me fazer chorar de tanto dar risada. Ele me alcançou e então eu sofri por dois minutos que me pareceram duas horas. Minha barriga já doía. “E isso é pra você aprender a não rir dos meus sonhos!” “Desculpa! Não foi minha intenção, eu acredito em ti, sei que és capaz e quero estar contigo quando abrir a Loja do Mirante.”, eu ainda tinha alguns espasmos de risada, deitada no gramado, enquanto ele levantava. “Você estará.”, Raul estendia a mão para me ajudar a levantar, mas ele praticamente me levantava sozinho. Eu gostava também da forma que ele poderia me conduzir por onde quisesse, pelo menos 10 centímetros mais alto que eu, ele sempre dizia o quanto eu era leve demais. Apesar de todas as tardes maravilhosas que passávamos juntos, as noites que se seguiam eram desastrosas. Discussões e mais discussões ao chegar em casa. Discussões que já tinham feito Raul me pedir para terminar. “Não acho justo o quanto você sofre em casa por minha causa.”, ele disse segurando as minhas mãos, “Eu já falei com seu pai, mas ele já se decidiu que não gosta de mim.”. E ele tinha razão, mas mais injusto do quanto eu sofria por causa dele, era o quanto eu sofreria se não estivesse com ele, se não pudesse ter dias maravilhosos com ele, se não pudesse vê-lo como eu o via, beijá-lo como eu fazia e nem ter certeza que ele era meu, sabendo que ele poderia ser. Isso seria mais injusto que qualquer outra coisa. Se me desentender com meu pai era o fardo que eu teria que carregar por amar Raul, eu o faria sem pestanejar e, depois de um tempo, eu já nem dava margem para as discussões com ele, só ouvia as reclamações em silêncio e depois ia fazer o que tivesse que fazer em casa. Quiçá a frustração maior do meu pai é que meu namorado estudava comigo na melhor escola da cidade. Cidade pequena não tem muitas boas opções então ele não me trocaria de colégio. Apesar de namorarmos, não sentávamos juntos na sala ele sentava na fileira ao lado da minha, mas no fundo da sala, enquanto eu sentava na frente, não só precisava como gostava de prestar atenção na aula. Mas nos intervalos e na hora de ir embora, eu era dele. Ademais, foi na escola que nos conhecemos, ele era o amigo do terror da sala. Trevor era insuportavelmente irritante. Era o típico garoto reprovado, que já desistiu de sair da escola e quer só zoar. Não parava de falar um segundo, discutia com a grande parte dos professores, dava em cima da professora de Biologia e da professora de Geografia, que aceitavam. Eu o odiava, principalmente porque sempre que ele, supostamente, errava a mira, a bolinha de papel acertava em mim. Mas se não fosse pela vez que eu fui devolver arremessando o papel nele e acertei Raul sem querer, talvez nunca tivéssemos ficados juntos, então agora sou grata ao Trevor e ele nem é mais tão irritante comigo. Apenas comigo. Já era verão e as chuvas repentinas começaram. “Vem, amor, coloca meu casaco na cabeça.”, Raul me cobria com a sua blusa para que eu não me molhasse no caminho para o carro. Funcionou. Mas ele estava encharcado. “Raulzito, você precisa parar de cuidar mais de mim do que de si mesmo, senão eu vou ter que começar a cuidar de você quando você ficar doente por minha culpa.” “Será que não percebe o que eu estou fazendo?”, ele me olhava com um sorriso de canto, um sorriso de quem está aprontando, enquanto funcionava o carro, “É isso mesmo que eu quero, você cuidando de mim.” “Vai sonhando, meu ego é muito grande para isso.”, meu semblante era sério, eu olhava através do parabrisa, desviando totalmente do olhar dele, mas ele sabia que era brincadeira. “Você precisa parar de me maltratar, sabia?”, ele se fazia de vítima, dando continuação à minha brincadeira. “Quando eu parar de te maltratar, seu amor por mim acaba. Conheço vocês homens, minha mãe já falou muito sobre vocês.” “Quem te deu seu primeiro beijo mesmo?” agora era a vez dele de se vangloriar, ele sabia que eu não tinha beijado ninguém antes dele. “Ahm? Quem? Eu?” falava tão rápido que não me dava tempo para respondê-lo. Eu só ria. “Ah, então acho que você não conhece nós homens.” Tão infantil quanto eu poderia ser, mostrei a língua pra ele, que revidou jogando meu cabelo na minha cara. “O que você acha de fazermos um piquenique como almoço? Mas com comida comprada. Lá na casa do mirante. Pode chamar alguém, se quiser.”, apenas acenei que sim para o convite. “Mas eu prefiro que seja só nós dois, já vai começar fase de provas e eu terei que passar mais tempo em casa.” “Comida japonesa ou fast food?” “Japa.” minha resposta deu espaço para a piada mais velha que existe sobre comida japonesa, “Quero comer um japa hoje.” e eu ria demasiadamente da piada, sou fã dpiadas idiotas. O olhar de desaprovação dele só fez minha risada se intensificar. Compramos yakisoba e sashimi, pegamos nossos pacotes de comida e fomos para o mirante. Para avisar minha mãe de que não almoçaria em casa, mandei uma mensagem de texto, meu pai nunca comia em casa então a princípio não teria problemas. Sentamos lado a lado na varanda da casa abandonada, encostando-nos na parede. “Nada mais tranquilizador que almoçar com essa vista.” Eu apenas sorri com o comentário dele. Nós já estávamos quase terminando nosso almoço e comecei a viajar em pensamentos sobre um futuro onde estaríamos morando naquela casa, mas agora reformada e com dois andares, moraríamos no de cima e embaixo seria a loja de conveniências que ele tinha mencionado alguns dias atrás. Então pensei no meu pai e em sua desaprovação. Será que algum dia ele aceitaria? Eu esperava que sim, porque não conseguia imaginar alguma outra coisa para meu futuro nesse momento, podia variar as profissões, a casa, a situação, mas nunca o rapaz que estaria ao meu lado. Eu tinha conhecimento de que tinha apenas dezessete anos e a vida toda pela frente para querer dizer que tinha encontrado o amor da minha vida, entretanto se alguém algum dia quisesse superar o meu atual namorado, teria que se esforçar muito. “O que tem de errado?”, meu semblante deveria ter transformado-se do sorriso que dei ao ouvir o comentário dele para meu pensamento sobre meu pai, já que ele me olhava com um ar de preocupação. Eu só chacoalhei minha cabeça negativamente, pronunciei ‘nada’ baixinho e mexi meu yakisoba com o hashi e levei o que faltava até minha boca pra me manter ocupada. “É alguma coisa com seu pai?” Sua capacidade de adivinhar o que eu estava pensando chegava a me assustar. Meu choque com sua adivinhação foi tamanha que demorei um pouco pra responder. “Não… não…” ainda terminava de mastigar e meus olhos ainda estavam parados na movimentação do mar, ondas que quebravam ao longe, pequenos pontinhos pretos entre elas que me faziam acreditar que eram surfistas. Imaginei se eu parecia num comercial de shampoo já que eu podia sentir que o vento que vinha de encontro conosco estava balançando meus cabelos no espaço que tinha. Ele colocou sua caixa de yakisoba de lado ao terminar de comer, eu fiz o mesmo, ele passou um dos braços atrás do meu pescoço e me puxou para mais perto dele. Antes que ele tentasse me questionar, fui eu quem indaguei desta vez. “Alguma vez você já pensou sobre o futuro?” Não houve uma resposta audível, talvez se eu não estivesse com a cabeça encostada em seu peito, eu não saberia que ele tinha dado uma resposta. A não ser que eu estivesse olhando para ele, já que foi apenas um aceno afirmativo com a cabeça. “O que você vê?” Sua demora me fez acreditar que ele não me responderia e de fato foi o que aconteceu. “O que você vê?” ele repetiu minha pergunta. Desencostei de seu peito, o suficiente para poder encará-lo. “Estou falando sério, Raul. O que você vê?” Agora era ele quem desviava o olhar, fixando à frente, era sua vez de observar os possíveis surfistas. “Você…”, ele se demorou mais alguns segundos nos surfistas e então me olhou, eu já não olhava mais para ele, estava procurando o que ele via de tão interessante à frente, ele afagou meus cabelos e ainda me olhando repetiu mas com frase completa. “Eu vejo você.” Eu deixei que ele me deitasse novamente em seu peito depois que eu sorri aprovando sua resposta. Selei meus lábios nos dele e voltei a cabeça na posição em que ele tinha me colocado. Havia gostado de sua resposta, porém eu sabia que como ele respondeu, ele gostaria de saber o que eu via. Eu não tinha certeza do que via. Então antes que ele pudesse me perguntar, já comecei a me levantar para correr. “Ei, o que VOCÊ vê?”, mas já era tarde demais, eu já pulava da varanda e começava minha maratona. Apesar de toda minha demonstração de afeto nessas memórias que vos conto, acredito que eu não era tão aberta assim com o moreno que dominava meus pensamentos. Eu nunca respondia diretamente o que ele queria saber, enquanto ele me dava todas as informações que eu pedia. Eu sempre dava um jeito de fugir das especulações que ele tentava fazer sobre meus sentimentos, assim como disse pra ele no carro, minha mãe me disse muitas coisas sobre os homens e uma delas, talvez a regra mais importante, é que eles nunca devem ter certeza sobre nossos sentimentos, porque este é o início do fim. Algumas vezes, como nessa pergunta, eu fugia literalmente, correndo, forçando-o a correr atrás de mim, dando-me algum tempo para elaborar algum assunto que trocasse a atenção dele. Mas foi a minha atenção que mudou. Olhei para trás para ver a distância que estávamos e, para minha surpresa, ele estava muito atrás de mim. Tossindo em demasia. Voltei correndo ao seu encontro. “Você está bem, Raul?” O rapaz balançou a cabeça positivamente e continuava tossindo. “Melhor irmos embora, não acha? Vamos sim.” Já o conhecia o suficiente para saber que ele diria que não precisava ir embora, assim que pudesse falar. Mas eu já estava me sentindo culpada por sua tosse, ele tinha se molhado para sair da escola para me proteger da chuva e o vento naquele lugar era inexplicável, um pouco excessivo. Entramos em sua F1000 e ele me deixou em casa antes de ir embora. Nosso beijo de despedida foi inexplicavelmente intenso, acabou um pouco rápido, mas nunca tinha sido tão bom. Eu já estava saindo da camionete e resolvi voltar para dar mais um abraço e selar nosso tchau com um pequeno beijo. Dei uma risada e tossiu ao sorrir pra mim. “Eu te amo”, ele sussurrou. “Eu te amo”, sussurrei em resposta. Não éramos o tipo de casal que ficava de melação, tínhamos repetido essa frase poucas vezes e esse era mais um dos pontos que eu tinha listado para nos separar dos outros casais, os comuns. Por chegar mais cedo que o normal em casa, não tive problemas com meu pai nessa noite. Um jantar calmo e até aconchegante. Liguei para saber como ele estava e ele tinha piorado, estava a caminho de um Pronto Socorro, uma vez que ele sofria de bronquite crônica e indubitavelmente a chuva e o vento tinham piorado. Desliguei o telefone para que ele fosse atendido pelo médico, no entanto minha preocupação foi a mil. “Amor, já estou medicado, pode dormir tranquila (espero que já esteja dormindo). Acho que amanhã não vou à aula. Mas podemos sair à tarde se quiser. Dorme bem, s2”, só li a mensagem de texto pela manhã. Como ele mesmo tinha previsto, não foi à aula pela manhã e nem respondeu minhas mensagens, certamente estava dormindo, já que sua mensagem tinha sido me enviada mais de três horas da manhã. Eu já havia avisado minha mãe da situação de Raul e ela mesma tinha me dado a ideia de visitá-lo e cuidar dele na parte da tarde. E foi o que fiz. Perto da hora da saída, ele me respondeu, dizendo que tinha acabado de acordar e que eu poderia visitá-lo, se quisesse. E fui. Os pais dele me adoravam, extremamente o inverso de meu pai com Raul. Passei a tarde toda cuidando dele na beira de sua cama. “Falei que eu teria que cuidar de você.”, ele riu. “Eu só estou te testando, na verdade, para ver se seu ego é tão grande mesmo.”, eu teria acreditado em suas palavras pela expressão séria com que ele disse aquilo e manteve, se não fosse pela tosse, muito semelhante à tosse de um cachorro, que veio a seguir. “Uh! Por pouco não me enganou!” ironizava-o para fingir que nao acreditei hora alguma. E foi nesse clima que ficamos a tarde toda. Assistimos a um filme qualquer que passava num canal qualquer e vi no relógio digital ao lado da televisão que estava na hora de ir embora. “Eu te levo pra casa.” “Capaz, fica deitado! Eu ligo pro meu pai.” “Prefiro te levar, é menos problema do que ele ter que vir até aqui. Vai parecer que você quer afrontá-lo.” “Alguma hora ele terá que se acostumar com a ideia.” Disquei o número de meu pai e liguei. Era incrível como eu só gastava meus créditos com meu pai quando ia pedir algo, caso contrário, ligava a cobrar. Avisei onde eu estava e a voz de descontentamento do outro lado da linha disse que já me buscaria. “Eu disse que te levaria. Você não precisaria passar por isso.” “Estou decidida a fazê-lo te aceitar, não quero mais isso, hoje eu terei essa conversa com ele. Nós não fazemos nada errado, Raul. Você é bom! Não existe um porquê para ele continuar te tratando desse jeito.” e foi o que fiz. Entrei no carro e meu pai começou a gritar comigo, eu já nem prestava mais atenção, deveria ser a mesma ladainha de sempre. “Ele não é bom o suficiente. Ele tem barba. Ele tem tatuagens. Ele atrapalha seus estudos. Ele não é da Igreja.”, esperei pacientemente até ele terminar de falar, ele desistia bem mais rápido quando eu não tentava argumentar. “Eu o amo, pai. Eu o amo desse jeito mesmo.” e ele tentou me interromper e eu levantei uma mão. “Agora é minha vez, você disse tudo o que pensava. Ele não é da Igreja, mas ele me respeita, eu acho que é o que eu espero de alguém que esteja comigo, respeito acima de tudo. As tatuagens não tem como ele tirar, mas todo o resto eu posso mudar, eu posso ajudá-lo a ser melhor. Não é isso que o Evangelho prega? Que eu devo amar ao próximo independente de seus defeitos? E ajudar os outros a melhorarem? A agirem da forma correta e tudo mais? Estou fazendo isso, pai.” Acredito que foi nessa hora que eu o convenci que estava certo. E só acredito nisso porque levei um tapa na cara. “Nunca mais use as doutrinas para defender esse marginal. Eu odeio ele.” A última frase ele disse num sussurro quase inaudível quando nós já estávamos chegando em casa. Segurei meu choro ao máximo, entrei em casa correndo e fui direto para meu quarto. Mamãe queria saber o que tinha acontecido, mas eu não queria ver ninguém, não queria falar com ninguém. Meu celular apitou pelo menos umas oito vezes naquela noite, mas eu não queria saber quem era. Não queria. Queria ficar sozinha. Meu pai nunca entenderia. O que Raul tinha feito de tão errado? Por que ele não podia se conformar? Já era quase oito meses e eu nunca cedi às tentativas dele me trancar em casa ou me afastar do meu namorado e ele ainda não tinha entendido. Meu celular tocava freneticamente, o modo silencioso não era suficiente para interromper o barulho, porque ele continuava vibrando e o som irritante continuava, então arranquei a bateria e joguei do outro lado do quarto. Finalmente o silêncio, que só era quebrado pelos meus soluços. “Que merda de vida.”, eu repetia. O telefone de casa tocou. “Que merda de vida! Só quero silêncio!”, eu resmungava no travesseiro. “ALICEEEEEEE! ALICE, FILHA, TELEFONE PRA VOCÊ.”, com certeza era Raul preocupado comigo, mas eu não queria falar com ele, não nesse estado em que eu me encontrava, ele ficaria preocupado. “Fala que eu ligo depois.” tentei gritar, mas minha voz estava chorosa e travou numa altura. “Filha, acho bom você atender.” minha mãe já estava do outro lado da porta. Eu destranquei e sussurrei para perguntar quem era. Mas minha mãe desviou o olhar de mim, tinha alguma coisa errada com ela, com os olhos dela. Atendi ao telefone vacilando. “Quem é?” “O..Oi Alice.. Alice… Eu gosto tanto de você, querida. Tanto. Você melhorou nosso filho, você o melhorou tanto.” A voz era da mãe de Raul, mas eu não entendia porque ela estava chorando. “Você sempre foi uma menina boa. Oh, Alice..Oh!” “O que aconteceu, Sra. Bastilieri?”, o sobrenome deles era a única coisa que ainda restava da família com descendência italiana. Eu já sabia o que tinha acontecido. Minhas pernas tremiam e eu não conseguia mais me equilibrar sobre elas, me encostei na parede, minha mãe tinha ido para o banheiro. Provavelmente não queria que eu a visse chorando antes de ter motivo para fazer o mesmo. “Nosso Raul… Ele… Oh, Alice! Não o teremos mais.” “Nós o teremos sim. Nós o teremos. Ele estava me ligando. Eu posso falar com ele agora. Passa o telefone pra ele.” ele estava me punindo por não tê-lo atendido, queria me pregar uma peça, com certeza era isso. Nada de errado poderia ter acontecido com ele, foi muito pouco tempo para algo assim. Eu esperava ele atender, mas eu só ouvia os soluços da mãe dele e de alguém mais que parecia estar perto dela. Minha garganta estava estranha, uma bola de ar tomava conta dela e eu não conseguia engolir. Minhas amígdalas davam a impressão de estarem inchando e tinha algo muito errado. “COLOCA ELE NO TELEFONE! MANDA O RAUL ME ATENDER.”, sua mãe já não conseguia mais. E então a voz do pai dele tomou conta do fone. “Sentimos muito, Alice. Espero que possas continuar nos visitando, gostamos muito de você. Mais tarde daremos mais detalhes. Agora precisamos lidar com algumas coisas… Com a despedida.” O tempo todo eles evitaram dizer o que tinha acontecido e isso me destruiu ainda mais. Eu não o tinha atendido. Eu precisava saber o que ele queria. Arrastei-me pelo meu quarto vasculhando todos os possíveis lugares em busca da bateria que eu tinha arremessado. Meu choro incessante me irritava, meu soluço me irritava, estar no meu quarto me irritava, não encontrar minha bateria me irritava. Levei pelo menos três minutos para encontrá-la, estava caída debaixo da minha cômoda, a qual tinha uma foto minha e de Raul, ambos fazendo careta, com a bateria numa mão, peguei o porta-retrato com a outra e levei ambos para cima de minha cama. Eu olhava sorrindo para a nossa fotografia enquanto colocava a bateria em seu devido lugar, de onde eu nunca deveria ter tirado. “Isso não é verdade, não pode ser verdade. Eu vou ligar meu celular e ligar para ele e ver onde ele está.”, não parei de repetir até que a tela do meu celular se acendeu. Todas as três ligações eram do Raul. Com três mensagens na caixa postal. E oito mensagens de texto. As li na ordem em que tinham sido enviadas. 1: “Amor, foi tudo bem? Seu pai falou muita coisa?” enviada às 18:10. 2: “Alice, me responde.” enviada às 18:17. 3: “Ele não tirou seu celular, certo? Me responde, estou ficando preocupado.” enviada às 18:23. 4: “Ok, desisto, não quer falar comigo, não fale.” enviada às 18:29. 5: “Brincadeira amor, fale sim! Inclusive eu quero mesmo é que você fale comigo!!!!!!!!!!” enviada às 18:33. 6: “O que seu pai fez?” enviada às 18:37. 7: “Definitivamente, algo muito ruim aconteceu! Você não está nem atendendo ao celular.” enviada às 19:45. 8: “Estou indo até aí. Você querendo ou não. Não me importo com o que seu pai acha de mim ou da minha visita, eu não vou desistir de você. Eu te amo.” enviada às 19:52. Liguei para a caixa postal para ouvir as mensagens, na primeira ele não disse nada. “Amor, me liga de volta quando ver isto, ok? Eu acho que estou parecendo um pouco psicótico, você pode estar tomando um banho e eu aqui pensando um milhão de tragédias que podem ter acontecido. Haha, beijos.” tinha na segunda. “Última tentativa, estou no meu carro, indo até aí. Quando eu chegar aí vou…” o barulho que seguiu parecia uma série de latinhas de refrigerante sendo amassadas e vidros sendo quebrados. E eu nunca soube o que ele faria se tivesse conseguido chegar aqui. Meu choro intensificou-se e agora até soluçar doía, pensar doía, abrir os olhos doía. Tudo doía. Lixo, trapo, verme, podre eram adjetivos bons demais para mim. Que tipo de pessoa egoísta era eu? Só pensei em mim e na minha raiva. Eu deveria ter compartilhado com ele. Ele era meu namorado! Mas alguém mais tinha culpa nisso. De onde tinha tirado forças para atravessar o corredor e descer as escadas correndo, eu nunca descobri. Encontrei meu pai no sofá da sala, sentado, olhando para o chão. Parei de correr na porta da sala, com todas as minhas veias palpitando, eu podia sentir meu rosto ficando vermelho, porque ele esquentava a cada passo que eu dava. Escutei minha mãe chegando na sala atrás de mim, entretanto não olhei para trás. Eu tinha um foco. Meu pai percebeu o que se passava e levantou-se, seus olhos assustados e muito abertos, ele olhava pra mim um pouco temeroso mas com pena, eu podia ver a pena por trás daqueles olhos odiosos. Minhas sobrancelhas franzidas e com o soluço que não parava. Eu era só ódio. “Você fez isso!” eu comecei quando parti pra cima dele, dando socos no peitoral forte de meu pai. “Você o fez ir embora! Por que você só não aceitou?” Eu repetia os movimentos tentando inutilmente fazer com que meu pai sentisse a dor que eu sentia, compartilhasse da revolta que eu estava passando. No entanto, a única reação dele era tentar me abraçar. Eu não queria ser abraçada, me desvencilhava dos braços dele e então dei um passo para trás. “Vamos! Diga, repita agora, diga que o odeia! Diga que o odeia! Você… Você….” ele tinha conseguido me abraçar, me pressionou contra o peito dele e eu não conseguia mais sentir raiva. “Por que? Por que?” eu disse por fim. “Shh.” balbuciou meu pai na tentativa de me acalmar. Funcionou por alguns segundos, tempo suficiente para ele passar a mão pelos meus cabelos. E então eu o afastei. Mais do que nunca eu precisava ficar sozinha. Peguei as chaves do carro que estavam em cima da mesa e saí pela porta. Não sei se meus pais não perceberam ou só não tentaram me impedir, mas julgando pelo meu estado emocional, a primeira opção era mais correta. Funcionei o carro e dirigi até o mirante. Eu não queria me despedir dele, eu não queria deixar para trás tudo o que tínhamos vivido. Todas as brincadeiras. Sentei na varanda da casa, tudo era escuro demais ali à noite. Eu fechava os olhos e podia nos ver correndo pelo gramado, podia ver ele me fazendo cócegas, podia sentir ele ao meu lado, me abraçando, querendo saber o que eu via no meu futuro. Eu fui caminhando lentamente até a beira do mirante. “Eu vi você. No meu futuro, eu vi você.” e nessa hora eu entendi que eu não conseguiria ter um futuro sem ele.