quarta-feira, 13 de abril de 2016

Hábito Inveterado


Por quanto tempo eu havia dormido?
Acordei atrasada e não tive tempo de tomar café da manhã ou dizer tchau à minha mãe. Vesti-me apressadamente, fiz a higiene pessoal com o capricho que o tempo me permitia e saltei para a rua quase correndo. Caminhei rápido até o ponto de ônibus mais próximo de minha casa e só quando parei para esperar por ele, notei a mudança.
Quebrei a tela de meu celular no dia anterior e deixei-o para arrumar logo após o trabalho em um shopping próximo à minha casa e, para meu azar, a tela estava em falta e só teriam como arrumar no fim do dia seguinte, no caso hoje. Não tendo o despertador do celular, tentei me ajeitar com um antigo de pilha, emoldurado de acrílico rosa, que deveria ter pelo menos uns doze anos. Claro que ele não despertou pela manhã e por isso eu havia perdido a hora.
Por quanto tempo eu havia dormido?
Tinham mais pessoas no ponto de ônibus, mas nenhuma delas eram pessoas normais. Pareciam normais, mas havia algo de diferente, dava para sentir. Eu sorria e cumprimentava com um aceno de cabeça a todas as pessoas, mesmo que não as conhecesse. “Gentileza gera gentileza”, diziam vários cartazes colados pela cidade. Talvez só eu os lesse, uma vez que nunca sorriam de volta. Na verdade, muitas pessoas pareciam se assustar com meu comportamento; “simpática demais”, ouvi várias vezes; outras seguravam a bolsa mais perto do corpo; algumas atravessavam a rua.
Eu nunca soube se o problema estava na minha aparência ou se as pessoas haviam esquecido que pessoas boas existiam. Eu não as culpava, não nessa cidade. O índice de crime, de todos os tipos, apenas crescia a cada ano. Triste realidade. Mas lá estava eu, tentando aplicar em minha vida ensinamentos que tive a vida toda: na minha família; nas músicas que eu ouvia; com os grandes pensadores antigos e contemporâneos; nos livros que eu lia; no que todas as Igrejas, independente da religião, sempre pregaram; Amor ao próximo.
Cansei de levar tombo pelas minhas tentativas, mas nunca desisti, nem do amor, nem do próximo.
Fluxo de pensamento.
Por quanto tempo eu havia dormido, mesmo?
Parecia que algum tipo de vírus estava tomando conta na cidade, percebi assim que meu ônibus parou. Apenas eu e mais duas pessoas do ponto pegamos aquele ônibus. As pessoas que já estavam nele tinham a mesma aparência doentia que as que estavam no ônibus.
Recebi um sorriso em resposta do meu. Decidi que deveria me aproximar daquela moça, ela deveria ser imune ao vírus como eu parecia ser.
A não ser por mim, a moça, o motorista e o cobrador, todos os outros estavam de cabeça baixa, as que estavam sentadas olhavam para seus colos, as que estavam em pé olhavam para suas mãos livres, olhos fundos, rosto sem expressão. De vez em quando soltavam um risinho, mas logo voltavam àquela expressão mórbida. Chegava a ser apavorante estar ali rodeada por elas.
A moça trocava olhares comigo. Ela girou os olhos, olhando ao redor sem mexer a cabeça, voltou a fixar sua orbe em mim e arqueou as sobrancelhas, como quem diz “O que está acontecendo?”. Respondi pressionando meu lábios um no outro, como quem diz “Estranho, né?”. Ela deu de ombros.
Passamos mais alguns minutos nos olhando e eu estava próxima à minha parada. Pressionei o botão que solicita uma parada e o ônibus foi reduzindo a velocidade. Acenei para a moça com um aperto no coração em deixa-la ali com todas aquelas pessoas estranhas. E só quando saltei do ônibus, o aperto no meu coração mudou de motivo, era para comigo agora. As pessoas em torno do prédio em que eu trabalhava, também estavam daquele jeito.
O tempo que eu havia dormido já não era mais minha principal preocupação. Até porque parecia ter durado meses, se não, anos. Não era possível que as coisas tivessem mudado tão drasticamente em questão de poucas horas e que eu não tivesse percebido.
Olhei a hora no hall de entrada do prédio do meu trabalho e descobri que me atrasara apenas quinze minutos, o problema não estava no meu sono. Isso me acalmara.
O porteiro do prédio também estava normal. Ele era um senhor mais velho, já tinha mais cabelos brancos que castanhos em sua cabeça. Deu-me um bom dia sorridente e, se não fosse meu atraso, teria parado para conversar sobre essa mudança estranha nas pessoas. Restringi-me a responder seu bom dia com a mesma empolgação e correr para que a porta do elevador não se fechasse e me deixasse ali parada e esperando por mais alguns minutos.
O elevador não estava vazio, encontravam-se ali mais três pessoas. Os três estavam com àquela expressão.
Agora eu estava realmente assustada, uma das pessoas era uma das minhas colegas de trabalho. Ela nem percebeu que eu estava ali, olhava para suas mãos, como o pessoal em pé do ônibus.
Ela só foi notar minha presença quando entrávamos pela porta do escritório em que trabalhávamos. Ela me deu bom dia com um sorriso apagado e entrou rápido, ainda olhando para as próprias mãos.
Tínhamos duas recepcionistas, uma delas bem jovem e a outra mais velha. A jovem parecia ter sido pega pelo vírus, a mais velha me deu um bom dia acalorado, ao qual eu respondi com o mesmo tom.
Era bom saber que tinha mais pessoas que eram imunes.
Ao sentar em minha mesa, liguei meu notebook o mais rápido possível para pesquisar sobre “vírus afetando a humanidade”.
O que apareceu foram vários sites contando a história dos vírus ao longo do tempo.
Então pesquisei “vírus atingindo as pessoas”.
Achei muitos vírus.
Zika, dengue, h1n1, chikungunya, até vírus de computador. Mas nenhum que parecia sequestrar o cérebro daquela forma.
Minha chefe, não tão jovem e nem tão velha, chegou para mim com algumas tarefas para o dia e perguntando de algumas coisas que ela havia me passado no dia anterior. Respondi às suas perguntas e peguei as tarefas do dia. Minha pesquisa era importante, mas eu tinha muita coisa a fazer.
Eu não fazia horário de almoço, dividia minha “hora” em 20 minutos, três vezes ao dia, para poder cumprir as ordens da minha nutricionista e conseguir fazer seis refeições por dia. Uma conversa com minha chefe foi o suficiente para que ela percebesse que seria muito mais produtivo do que me deixar ficar por uma hora procrastinando e voltar com aquela preguiça-pós-almoço. Enfim, eu carregava minhas refeições em uma mochila e fazia minhas refeições em minha mesa mesmo; o que dificultaria minha pesquisa de campo sobre o vírus.
Tudo bem, eu teria que passar pelo shopping no fim da tarde, muito provavelmente veria muitas pessoas por lá, conseguiria ter uma boa base.
Enquanto eu fazia meu trabalho, meu pensamento voltava esporadicamente ao vírus. Seria mesmo um vírus? Algo que afetaria o modo de agir das pessoas? Parecia com aqueles filmes em que extraterrestres invadem a terra e colocam as pessoas para agir num padrão imposto por eles e suas tecnologias. Ou então um daqueles filmes de apocalipse zumbi em que o cérebro das pessoas perde sua principal função e as pessoas passam a agir num padrão ignorante, sem mais pensar, só seguindo a instintos.
Ri dos meus pensamentos manipulados por filmes e séries recentes e voltei ao trabalho.
Hora ou outra, eu parava para prestar atenção nos colegas de trabalho e percebi que, se não fosse por mim e pela moça do ônibus, eu poderia separar as pessoas que estavam agindo estranhamente em pessoas jovens, enquanto as mais velhas seriam imunes. Mas eu e a moça quebrávamos esse padrão. Então tentei encontrar outro padrão.
Para meu azar, minha única amiga no trabalho tinha faltado hoje. As outras pessoas eram apenas colegas. Ninguém que eu confiasse o suficiente para lançar minha teoria apocalíptica e que não tinha medo que acreditasse que eu precisasse de um psiquiatra.
O fim da tarde se aproximava. Com ela, o fim do expediente e a volta do meu celular.
Assim que o horário chegou, todos desligavam suas máquinas e se despediam. Demorei mais cinco minutos no Google, procurando por alguma notícia recente publicada sobre a maneira estranha que as pessoas estavam agindo e nada apareceu. Ou pelo menos eu não havia digitado alguma palavra-chave que correspondesse com o que estava acontecendo.
Desisti e ainda peguei o elevador com mais pessoas. Três jovens e duas meia-idade, meu primeiro padrão se repetia, se não fosse por mim.
Tentei tirar essas teorias da minha cabeça enquanto me despedia de colegas e do porteiro no saguão. No entanto, assim que cheguei ao ponto de ônibus, foi ainda mais perceptível a quantidade de pessoas contaminadas, todas jovens. Pessoas com uma vida toda pela frente, algumas que ainda nem saíram da escola, que nem decidiram o que fazer com suas vidas... Por que essas seriam as escolhidas? Tão imaturas. Se fosse mesmo por uma invasão extraterrestre, não seria melhor se recrutassem pessoas que já tem alguma noção de guerra, os soldados, os exércitos em geral...? Ou talvez os alienígenas não precisassem disso, precisassem de pessoas novas e saudáveis.
Após alguns ônibus, o meu estava se aproximando, eu e mais algumas pessoas fizemos sinal e ele parou. Entramos. Paguei pela minha passagem e continuei meu estudo. Minha teoria começava a se desfazer, alguns homens com aparência de pai de família, de 30 a 45 anos e algumas mulheres que aparentavam a mesma faixa etária também estavam perdidos em seus devaneios. Olhando com aparência robótica para a altura das mãos. Notei que os dedos se moviam de vez em quando, mas as expressões não mudavam.
Zumbis, com certezas são zumbis.
Ocorreu-me que a nova geração, aquela que já nasceu com toda a tecnologia em alta, os chamados nativos digitais, era definida como Geração Z. Geração Zumbi. Ri, tentei me conter sem sucesso e continuei rindo. Algumas pessoas, saíram do seu transe e me olharam, balançaram a cabeça desaprovando e voltaram sua atenção para suas mãos.
Desci no ponto próximo ao shopping e me dirigi a ele sem pressa, observando todas as pessoas que passavam por mim. Definitivamente, a maioria dos atingidos eram os jovens, mas existiam exceções consideráveis. Percebi uma mãe que andava com sua filha, a garota pedindo algo para ela, que não dava atenção porque o que tinha em suas mãos parecia muito mais interessante a ela do que sua filha.
Eu não conseguia lidar com o pensamento de que algo seria mais importante que um filho, só podia ser alguma doença, não era possível. Não conseguia lembrar de nada que pudesse se sobrepor a um filho. E infelizmente, aquela não era a única mãe ou pai que agia daquele modo.
Que doença do demônio! Pensei. E não era apenas os pais, alguns casais também pareciam muito mais interessados com o que tinham nas mãos, do que com seus parceiros.
Comecei a me estressar de verdade, não com as pessoas em si, mas com suas reações. O que poderia dar mais prazer do que passar um tempo com quem se gosta? Como alguém poderia perder esse toque, essa vontade de estar com alguém que gosta, que ama, trocar todas as coisas boas, conversas, brincadeiras, tempo juntos para ficar encarando as mãos.
Não era possível que alguém tivesse criado um vírus que fizessem as pessoas perderem isso, era bem mais fácil que alienígenas tivessem implantado algum tipo de tecnologia robótica na cabeça dessas pessoas, talvez trocado pelo cérebro.
Precisei de um tempo no banheiro do shopping, antes de pegar meu celular e me mandar dali, conferir se minha família sofria da mesma doença. Eu desejava do fundo do meu coração que não.
Lavei meu rosto com a água gelada que saía da torneira. Sequei no papel-toalha e decidi que não mais observaria as pessoas, só iria buscar meu celular no conserto e retornaria para a casa.
O atendente da loja de conserto de celulares parecia normal. Conversou comigo, buscou meu celular, eu paguei e ele, antes de me entregar, mostrou que estava tudo funcionando normalmente agora.
Assim que conectei o celular à rede 3G, começou a chover notificações. Fiz todo o trajeto até minha casa dando pequenas olhadelas para a frente, para me certificar de que não esbarraria em nada e em ninguém. Já conhecia o caminho, poderia andar por ali vendada, se estivesse vazio. Continuei a verificar todas as mensagens que chegaram nessas vinte e quatro horas desconectada. A maioria era mensagem desnecessária, minha amiga do trabalho avisando que estava com desarranjo intestinal por isso não compareceria ao trabalho, alguns e-mails de lojas... Nada útil.
Desejei melhoras à minha amiga, antes de virar a primeira esquina. Mandei uma mensagem para minha irmã, perguntando se estava tudo bem, se ela tinha sentido alguma mudança na mamãe ou nela mesma, talvez no papai. Abri meu Facebook para ver se tinha recebido algo importante: notificações de grupos bobos que nem me dei ao trabalho de ler; notificações de eventos que não conferi quais eram; notificações de aniversário que só abri para ver se não tinha alguém muito próximo ali, mas não tinha; rolei um pouco a timeline, para ver se alguém tinha comentado as ações estranhas das pessoas hoje, mas nada apareceu.  Mandei uma mensagem para alguns colegas da faculdade, perguntando sobre um trabalho. Mandei uma imagem engraçada no grupo da minha família no WhatsApp, mandei a mesma imagem também no grupo do trabalho e no grupo dos meus amigos. Avisei nos três grupos que eu já tinha celular novamente. Avisei também o rapaz com quem eu conversava a mais de um mês e que eu achava que gostava dele. Torci para que ele não tivesse sido contaminado. Recebi uma pergunta da minha irmã:
Como assim estranhos? Você vem pra casa ou vai direto para a faculdade?
Respondi que iria para a casa. Perguntei se eles não estavam com um olhar meio estranho e olhando tempo demais para as mãos. Ela ainda estava online então logo começou a digitar, segundos depois recebi outra mensagem:
Você quer dizer com o olhar que você fica enquanto mexe no seu celular?
E só então eu percebi que a única coisa diferente que aconteceu hoje foi eu ter ficado sem o meu celular. A tecnologia usada para trocar cérebro por algo robótico não era extraterrestre, era nossa. Trazendo para mais perto, as pessoas que estavam espacialmente longe; afastando as que estão ao nosso lado.